ANÁLISE
ao espectáculo MASSACRE | Alguém se lembra ainda de Timor?
por Daniel Gamito Marques
Para um ocidental mais desprevenido, “Timor” soa a qualquer coisa de estranho e exótico, a uma ex-colónia longínqua onde os portugueses atracaram há quinhentos anos atrás. Que interesse poderá haver num pedaço de terra que anda à deriva do outro lado do mundo? É exactamente para responder a esta pergunta que Paulo Castro apresenta a sua nova peça MASSACRE, uma criação em parceria com John Romão (Colectivo 84).
Quando aproximamos “Timor” da ideia de “MASSACRE”, e para aqueles de nós que são suficientemente velhos para se lembrarem disso, a reacção é outra. Timor significa então pessoas que correm para salvar a vida, gritos de terror e sangue derramado entre dezenas de monumentos aos mortos. O dia 12 de Novembro de 1991 ficou para sempre gravado na história da humanidade como o dia do massacre no cemitério de Santa Cruz, em Díli: o dia em que militares indonésios chacinaram dezenas de timorenses que, acompanhando o funeral de um activista pela independência de Timor-Leste, se manifestavam legitimamente pelo regresso do seu país à soberania perdida. Este poderia ter sido um dos incontáveis massacres que são cinicamente varridos para debaixo do tapete da história por falta de dados que os comprovem; porém, o caso foi diferente. Para além de ter ficado inscrito na memória dos sobreviventes, este massacre ficou também gravado em fita magnética, uma fita que correu os noticiários de várias televisões e que indignou milhares de pessoas pelo mundo, incluindo Portugal. Para muitos de nós, ocidentais habituados a consumir calmamente telejornais em países democráticos, Timor-Leste nasceu num cemitério entre balas, cadáveres e roupas ensopadas em sangue. Haverá forma mais macabra de se nascer?
O que passou ao lado das televisões foi que o massacre de Santa Cruz foi apenas um dos muitos massacres conduzidos pelo regime indonésio de Suharto. Depois do 25 de Abril de 1974, e na esperança de afirmar a independência de Timor-Leste contra a metrópole colonizadora, a popularidade de um partido de orientação mais à esquerda (FRETILIN), de conotação pro-marxista, não foi vista com bons olhos pelo regime conservador de Suharto. Em resposta, o governo indonésio lançou um ataque militar no final de 1975 que dizimou milhares de timorenses, forçando-os a submeterem-se à autoridade política de Suharto. Noam Chomsky, um dos maiores activistas políticos vivos, procurou denunciar estes crimes através de palestras e colaborando com Edward Herman na publicação do livro Manufacturing Consent (1988). Esta obra reune uma série de estudos que mostram como a manipulação da informação pelos meios de comunicação compactua silenciosamente com os interesses políticos das grandes potências económicas. Apesar da invasão indonésia ter sido oficialmente repudiada pelas Nações Unidas ainda em 1975, os Estados Unidos não tomaram qualquer iniciativa no terreno para garantir a independência de Timor-Leste; pelo contrário, 90% do armamento das tropas indonésias foi fornecido pelos americanos, tendo estes dados sido posteriormente confirmados pelos próprios intervenientes oficiais no processo. Depois da derrota americana, nesse mesmo ano, em solo vietnamita, e da sua consequente ocupação por um regime comunista, o jogo político da Guerra Fria passou para a ilha de Timor: era importante conter o aparecimento de outro regime pro-comunista em Timor-Leste, mesmo que isso significasse o patrocínio de massacres a larga escala. Chomsky mostra como, de acordo com as estimativas calculadas, os massacres levados a cabo andaram ao nível do genocídio. Apesar disso, o assunto foi abafado pela imprensa americana, que se ocupava em demonizar apenas as atrocidades cometidas pelo regime comunista do “Khmer Vermelho”, no Cambodja, numa extensão da sua política anti-comunista. Timor-Leste foi, portanto, um tabuleiro de xadrez onde se dispôs da vida de dezenas de milhar de pessoas como se estas fossem meros peões de madeira.
Mas a peça MASSACRE não tem como objectivo separar o mundo em “bons” e “maus”, como é habitual em qualquer filme hollywoodesco. Trata-se antes de confrontar a situação de Timor com as influências de “Leste” – e é bom não esquecer que, se para nós “o Leste” soa a um oriente filosófico, para Timor ele está na América e na Europa, e em todos os seus assédios políticos e económicos. Neste contexto, a banda sonora que atravessa toda a peça não podia ser mais apropriada. O trash metal não corporiza só a metáfora do massacre, da revolta e do horror, mas também a alusão ao lixo metálico das balas de metralhadora que envenenaram uma nação durante décadas. Hoje, importa perguntar o que é feito de Timor-Leste. O que resta para além da música dos Trovante e do título de “primeira nação do século XXI”? Primeiro: que os massacres só pararam depois de uma acção política concertada entre vários países. Segundo: que a independência de um país não é garantia da sua autonomia, e que a construção de uma cultura democrática tem de ser defendida todos os dias, ou corre o risco de ser assaltada por fanatismos e autoritarismos. Terceiro: que, num mundo globalizado com o nosso, cada estado está mais que nunca sujeito às influências de outros estados, e sobretudo a pressões económicas e políticas. Timor-Leste não é uma selva onde vivem meia-dúzia de aborígenes. Timor-Leste é um estado independente que, como tantos outros estados, procura a sua identidade no meio de uma situação desfavorável de crise económica mundial.
Qual é então, neste contexto, a importância da peça MASSACRE? Na linha do trabalho que o Colectivo 84 tem vindo a desenvolver, trata-se de usar a arte para falar de temas importantes e que devem ser discutidos. A criação de Paulo Castro não procura refugiar-se em artifícios de linguagem ou em moralismos gratuitos: numa linguagem directa, simples e rápida, fala de tudo o que deve ser dito – tudo o que tem de ser dito – para que o esquecimento não dê lugar à desumanidade. Timor-Leste conseguiu a independência, mas os massacres e os atropelos à liberdade continuam pelo mundo, como é o caso da ocupação da região do Tibete pela China, que foi conseguida graças ao massacre de centenas de monges budistas, à destruição de vários templos, e a uma discriminação cultural que continua até hoje. MASSACRE é mais um exemplo do poder que o teatro tem para, longe de se entregar ao culto das modas descartáveis, falar de temas importantes que dizem respeito a todos nós. É a prova de que o teatro em português está vivo e que, longe de ser um artigo de luxo dispensável em tempos de crise, é necessário porque serve para alguma coisa.