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SÓ OS IDIOTAS QUEREM SER RADICAIS
O espectáculo "Só os idiotas querem ser radicais" estreou a 21 de Novembro de 2009, no Festival Materiais Diversos (Alcanena), com textos de Mickael de Oliveira, direcção de John Romão e interpretação de Ângelo Rodrigues e John Romão.

Apresentamos aqui alguns excertos dos textos do espectáculo

I

O museu é um depósito de coisas roubadas, até aí, nada de novo. Gosto de saber que a minha civilização é feita disso, sinto-me menos mal. Porque quando era puto também roubava no supermercado chocolates e brindes dos cereais da Nesquick. Quando entro num museu e percebo que fomos um império, um império do gosto, eu próprio me sinto um imperador ao ver a Vitória de Samotrassa. Samotrácia não se escreve com dois “s” e tem asas e tem a cabeça cortada e eu que a vejo, não tenho nada, senão a certeza que sou um imperador que também aprecia naturezas mortas, porque a morte tem um cio absoluto.

Entrar no Louvre é entrar numa monarquia, não gosto de fotografar palácios. Eu entro sem máquina, nada dessas merdas para me substituir a memória, para ver por mim. Piso o chão de mármore que é também a matéria-prima das esculturas, e vejo os seguranças do museu mais preocupados em pedir aos japoneses para desligarem o flash ou mais preocupados com o escândalo da semana numa revista qualquer, e de costas viradas para Goya. Eu fico ali a ver pinturas, a ver os lugares vazios daquelas que foram para restauro, fixo-me numa pintura de um anónimo do século XV, ou tento decorar os nomes daqueles americanos da década de 70, que me surpreendem pelo hiper-realismo.

Eu não sei pintar nada. Sei pouco de escultura. Não sei jogar à bola. Mas sei que se eu quiser reconciliar-me com as coisas simples, ligo a televisão e se quiser reconciliar-me com as coisas complexas terei de apertar os ombros de David.

Mas o que me aborrece, ao ver os novos davides, é que eles são um tédio. O cânone contemporâneo é um tédio, e no teatro são um metatédio. Eu pensava que a história da arte tinha acabado, que os cânones já não são o que eram, que eles não contavam nenhuma narrativa. Mas continuam as obras do regime, continuam as obras da especulação, do dever fiduciário. Um espectáculo é um espectáculo. Uma escultura é uma escultura. Um quadro branco é um quadro branco. Um retrato é um retrato.

Os historiadores, os teóricos inventam crises, declínios, apogeus, revoluções estéticas. Inventam a sua história da arte consoante o mercado, consoante o poder dos estados. O que se alastrou às artes plásticas, alastra-se agora ao teatro. O novo tornou-se um valor comercial, especulado, um bom filão para urbanos endinheirados. Há quem continue a afirmar-se vanguardista quando as vanguardas acabaram. Há quem continue a vender-se como radical, quando a radicalidade é um logro comercial. Radical é degolar o pai, é foder a mãe, fazer-lhe filhos e irmãos, e querer voltar a entrar no útero, fazer com que o tempo retroceda até antes do ponto zero.



II

Eu sou mesmo genuíno, acho que agora mesmo sou radical e tenho um lado excêntrico de poeta urbano mal amado, entendes? Acho que sou trash. Mas não violo ninguém. Tenho o cadastro limpo.

E não é por o meu agente de seguros dizer que o meu corpo vale menos que uma perna do Ronaldo e que sou menos sagrado que a Mona Lisa, que eu não posso ser sublime e ser uma obra prima.

Fátima não deixa de ser Fátima por ser hoje uma indústria, porra, permanece o lugar da revelação! O céu não deixa de ser céu por albergar jactos de luxo que valem milhões. E o meu corpo não deixa de ser corpo por ter um preço.

Adorno, que não foi o meu pai e é filósofo, dizia que escrever um poema depois de Auschwitz era um acto bárbaro. É por isso que faço televisão, porque me recuso à poesia em cada cena das telenovelas que faço. Eu não sou poeta, nem um actor que faz arte. E quando me dão pontapés num jogo de futebol, marco um golo só para os lixar. Marco golos só para foder. E da mesma forma, eu faço teatro só para lixar. Eu sou um filósofo. E sei que a caverna de Platão não é um livro, e domino todos os aspectos da fenomenologia e das correntes feministas, sei o que é o estruturalismo e o pós-estruturalismo, mas não me apetece explicar-vos...



III

Apetece-me agora falar da morte, da morte a sério. Da morte que deixa uma pessoa a pensar sobre o que está a fazer. A morte que se pressente no cinema, no teatro, que se sente no dia à dia quando perdemos um amigo, ou quando um amigo perde um amigo, ou quando ouvimos falar de alguém próximo de alguém que morreu cedo, ou tarde, não importa. Importa saber que morreu, e que andava por aí.

Falar da morte no teatro é como usar fatos de época, já não se usa, e quando se usa torna-se rapidamente de mau gosto. É como falar de amor. Para falar de amor, como para falar da morte, é preciso dar grandes voltas, andar em rodeios, partir em fugas para conseguirmos dizer as coisas simples, “amo-te, quero foder contigo”. Para dizer isto há quem escreva peças de teatro, eu digo esta frase. Para dizer que choramos a morte, há quem escreva sobre o desaparecimento, sobre a distância, sobre o esquecimento, sobre paralelismos, mas eu digo “não morras, porra, quero foder contigo outra vez”.