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HIPÓLITO - monólogo masculino sobre a perplexidade
O espectáculo "Hipólito - monólogo masculino sobre a perplexidade" estreou a 14 de Fevereiro de 2009, no Fórum Municipal Romeu Correia (Almada), com texto de Mickael de Oliveira, direcção de John Romão e interpretação do mesmo com Martim Barbeiro, uma criança de 7 anos.

I
No início disse que tinha sido por causa de deus
Que deus tinha a posto doente por ser filha de quem era
No início nem sabia o que me estava a fazer
tinha sido proibido há anos de ligar a televisão
às vezes ligava às escondidas
No início pensei que fosse uma brincadeira
uma parvoíce
Mas depois aleijou-me
atou-me
e apertou-me com um braço enquanto que com o outro me tirava as cuecas
Dizia que tinha direitos sobre mim e que lhe ia contar
o que eu tinha feito
que tinha beijado um boneco masculino
Ia contar-lhe só porque o boneco era masculino
Mas não o beijei por ser masculino
beijei-o porque era fofo e meu amigo

A uma dada altura disse-lhe mas sujaste-me
quero tomar banho
Disse-me que eu estava limpo e que não precisava
Perguntou-me não te sentes mais leve agora
Disse-lhe que sim
Então argumentou que era a prova de que o que me tinha feito
curava
sarava certas feridas

Então porque é que não queres que conte às pessoas
Porque não é uma coisa para contar
Quando vais à casa de banho dizes aos estranhos o que foste lá fazer
Não pois não
Neste caso é a mesma coisa
não se diz nada porque ninguém tem nada a ver com isso
Mas o que fizemos não é normal

É normal sim
é normal porque é assim que as pessoas se amam
O meu pai fez-me o mesmo e mais tarde agradeci-lhe
Os adultos fazem isso às crianças
é uma prova de amor
aproxima-os

Se é uma prova de amor porque é que a tua boca cheira a vinho
E porque que é que os meus amigos nunca me falaram disso
Porque como já te disse não são coisas que se contam

Porque é tão sujo como quando vamos à casa de banho
É tão sujo como a merda
E o teu corpo não cheirava bem
parecia que estava qualquer coisa a apodrecer
fiquei com a boca a cheirar forte
Não gosto da sensação
Se não te importas não queria voltar a meter a minha boca onde

É para o teu bem
Eu é que sei o que é bom para ti

Mas quando estamos assim
não te reconheço bem
não chamas por mim chamas pelo pai
E é aí que tenho medo
ficas estranha



II

Não percebi muito bem o que o meu pai disse quando me falou
Havia qualquer coisa que não batia certo na forma como me olhava
Parece que enquanto se aproximava
assim
aos poucos
e me acusava
fizeste isto seu paneleiro de merda
ele queria era trincar e rasgar os meus lábios com os dentes
Como quem diz
como te atreveste a beijá-la
como quem diz
como te atreveste a provar o suco da boca da tua mãe
da minha mulher seu caralho

Estava pedrado
Estava pedrado papá
Não quis fazer as coisas por mal acredita
Foi depois de uma noite em que bebemos e snifámos coca
Queríamos festejar a tua vinda

Mesmo se não foi assim
Mesmo se não foi assim
quis tranquilizar-te com esta mentira para ver se te convertias à ideia
Mas a verdade é que eu e a tua mulher tínhamos fodido
como se não houvesse o amanhã
no dia antes de tu chegares
E fi-lo com tanta força papá
que acho que ela teve a impressão de ter sido violada
por uma dúzia de cavalos enraivecidos
E fi-lo porque esse era o castigo da nossa trindade

Assim de repente
abri um saco
pus uns ténis
uma roupa interior
e a cassete e
fui-me embora
Esperei junto à estrada principal um autocarro que costumava passar
Não passou
Roubei o descapotável do meu pai e acelerei para norte até a gasolina acabar
Cheguei algures e peguei-lhe fogo
disse adeus ao capitalismo e à realidade e levantei o braço e gritei Zizek
por concordar com tudo o que ele dizia em inglês

III
Só achava que eras mais velha
não porque eras superior moralmente
ou porque já tinhas passado por coisas que nunca passei
porque também passei por coisas que tu nunca passaste
mas sabia que eras mais velha porque as marcas das vacinas
que tens na pele do braço eram maiores
diferentes das minhas que são mais pequenas
E essas marcas são a prova de que o tempo passou

Dás-me a cassete

Se tu não me deres a cassete digo ao teu pai que me violaste
Tu és porco ó porcalhão
Tu és um porco um porco um porco porco porco porco porco porco
porco porco porco porco porco porco porco porco
porco porco porco porco porco porco porco porco
porco porco porco porco

Basta saberem o que andamos a fazer juntos e tudo cai
Irei morrer como uma velha puta é assim
Cortar-me-ão os cabelos como fizeram às mulheres dos colaboradores franceses
As mulheres mijar-me-ão por ser a puta deste regime
e os homens pôr-me-ão dedos na vagina com bocados de vidro na ponta
porque amei em excesso o meu filho
porque amei o meu filho com as mãos
Prefiro que me enforquem sabes
sim
porque quando for presa tomar veneno será um luxo proibido

Eu amei o meu filho com as mãos Eu ouviste

Não ouvi e não me quero lembrar

IV
Depois de ter lido e de não ter compreendido todas as palavras da carta
ela recolheu-a e queimou-a
Mas eu tinha-a decorado e escrito num caderno

Uns anos antes tinha-te escrito um poema
Não sei se to cheguei a ler ou se o leste
Não sei se o leste no dia em que te vi sentada a chorar na minha cama
com uma folha na mão
11 anos e não tinha pêlos
É uma altura da vida em que gostamos de escrever com as estripas
escrevemos mal mas é com tripas
a nossa boca fica ora um aterro seco ora uma fossa céptica
Aí mais vale a sinceridade do que qualquer qualidade literária
O poema chama-se

Para o dia da mãe

Mamã
Às vezes de madrugada
Quando não consigo dormir porque penso no teu amor
Queria ir ter contigo e dizer-te a chorar para que pares
Mas não te queria deixar
Eu quero que continues a minha mãe
Só não quero que tu me obrigues a brincar contigo sem que o papá saiba
Só não quero que tu me batas quando não obedeço
Só não quero que me castigues por não cumprir o sujo
Por não cumprir as tuas ordens que às vezes não entendo
Ouvi na televisão que as crianças também têm direitos
E que todos temos direito à nossa própria infância
Não sei bem o que é infância mas acho que sou
És a minha mãe de verdade mesmo quando me dizes que não o és
Mesmo quando dizes para não te chamar mamã
E mesmo quando queres que eu tenha um comportamento de adulto
Para deixar de chorar
Não sei o que é uma madrasta como dizem os outros
Só sei o que a palavra mamã quer dizer
E sei que tu és a melhor mamã do mundo
Fim

Mamã
desculpa se este poema não rima mas saiu do coração

Depois de a ter visto a chorar na minha cama
voltei lá para baixo
e ela foi ter comigo e
ajoelhou-se e
abraçou-se-me a chorar como as mães fazem nos filmes comoventes
Fiquei com pena
Depois
depois pediu-me
perdão e
voltou a repetir que estava doente
mas
que não devia dizer a ninguém o que fazíamos à noite
quando
supostamente deus dormia
Ela continuou na mesma
praticando no meu corpo um vaivém de carícias e sevícias